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[Análise] As técnicas de escrita escondidas na primeira página de Game of Thrones.

Livro As crônicas de Gelo e Fogo: Game Of Thrones volume 1
Livro As crônicas de Gelo e Fogo: Game Of Thrones volume 1

Analisando e dissecando as intenções de George R. R. Martin no momento do primeiro contato do leitor com a sua obra “As crônicas de Gelo e Fogo: Livro Um, A guerra dos tronos”.

Ninguém tem dúvidas que a literatura é capaz de produzir ambientes detalhados ao ponto de nos arrastar para dentro da narrativa com extrema facilidade, sobretudo quando o autor é habilidoso. O que muitos leitores não sabem – e alguns autores na fase de aprendizado também não – é que um dos segredos da boa escrita são as técnicas refinadas de escrita. Geralmente elas parecem escondidas dentro do texto, mas tem propósitos específicos de criar o engajamento no leitor e envolver seu imaginário para dentro daquela obra. Muitas vezes essas técnicas são pensadas e modeladas pensando palavra por palavra em cada oração dentro da narrativa. George R. R. Martim tem ampla experiência na indústria televisiva e no desenvolvimento de roteiros, além disso não começou a escrever ontem. São décadas de uma carreira que se desenvolveu através de muita habilidade produzida no seu trabalho. Por óbvio, As crônicas de Gelo e Fogo: Game of Thrones, sua obra de maior sucesso no mercado, já em sua criação, não poderia abrir mão de todas essas técnicas de escrita. Muito pelo contrário. Ela colhe todo esse sucesso como consequência de empregar de maneira eficiente essas técnicas e moldar a mente do leitor de acordo com o desejo do escritor e isso se reverte em engajamento e apreciação por parte do público.

Em uma de minhas análises, resolvi me aprofundar mais nessas técnicas que estão escondidas e fiquei abismado em o quanto George Martim consegue produzir não só de imersão como também de indução sobre toda a saga d’As Crônicas de Gelo e Fogo logo na primeira página do primeiro livro, Game of Thrones. Exatamente por isso resolvi dissecar a primeira página em busca de todos esses elementos ligados às intenções dele com o resto da obra.

Vou pegar ponto a ponto (em alguns casos até frase a frase) e esmiuçar para revelar as técnicas que o autor usou no intuito de te cativar e prender em seu riquíssimo universo. Começaremos pela primeira frase, afinal ela é a abertura do todo e os bons autores sabem que é imprescindível dizer muito sobre sua obra já nesse ponto. Vamos lá:

“Deveríamos regressar – insistiu Gared quando os bosques começaram a escurecer ao redor do grupo. – Os selvagens estão mortos.”

Já na primeira frase George Martim nos mostra o tom do livro. “Deveríamos regressar” à primeira vista não diz muito, mas a ideia de começar escurecer junto da colocação “ao redor do grupo” trazem um diferencial de especificidade na sentença. Até esse momento você não havia percebido que a primeira fala do personagem era um indício de temor e ainda assim você percebe o personagem demonstrar um vislumbre desse sentimento parcialmente encoberto. E isso devido ao simples fato de que começou a escurecer. Em seguida o autor constrói a ideia de modo que o perigo contido na escuridão está cercando o grupo e eles não terão como evitar. Está “ao redor do grupo”. Em volta. Cercando. Prendendo. Esse é o primeiro sinal implícito do sistema da obra e está completamente encoberto pelas técnicas empregadas pelo seu criador.

A primeira frase mostra um mistério, um perigo e um cenário que já está em mudança.

Patrulha da noite em incursão além da muralha.
Patrulha da noite em incursão além da muralha.

“– Os mortos o assustam? – perguntou Sor Waymar Royce com não mais do que uma sugestão de sorriso no rosto.”

Em seguida o autor nos apresenta um personagem com nome e sobrenome: Sor Waymar Royce. Mais adiante descobriremos ser um nobre (ele tem “nome”). Mais uma vez temos a oportunidade de ver o sistema da obra atuando de forma subliminar na nossa leitura e nas ideias que vão se formando em nosso imaginário. Um nobre fazendo chacota do humilde. Isso é o que o autor vai fazer durante toda a obra. Um nobre com nome faz o que quer e logo na primeira página você já recebe essa mensagem.

“Gared não mordeu a isca. Era um homem velho, com mais de cinquenta anos, e vira os nobres chegarem e partirem.“

No parágrafo seguinte somos apresentados à Gared, um cara com mais de cinquenta anos. Ou seja, tem experiência naquela vida. Não só com o lugar em que está, pois ele sabe que deve temer o escuro, como também com os nobres que não o respeitam. Mais adiante perceberemos que o Royce da primeira frase é muito mais novo que Gared. Ou seja. Nesse mundo o nome é que faz a diferença. Eis o sistema do worldbuilding do autor mostrando as caras de modo quase imperceptível logo no começo da obra. É através dessas técnicas que ele vai manipulando sua imaginação e colocando as ideias certas dentro da sua mente sem você nem se dar conta.

– Um morto é um morto – respondeu. – Nada temos a tratar com os mortos.

– Mas estão mortos? – perguntou Royce com suavidade. – Que prova temos disso?

Nesse trecho podemos pegar dois parágrafos/falas, ao invés de uma só. Aqui vemos Gared, o homem mais velho e experiente naquela função, bater o martelo sobre os alvos de sua busca estarem mortos e que isso punha um fim em sua demanda. Voltando ao livro, por alguma razão Royce não acredita nessa alegação. É perceptível as nuances de seu caráter escapando através da ideia “com suavidade” com que ele fala. Além dessa sutil sugestão, o texto vai além e deixa explícito: ele quer provas. Ele é um nobre. Nobres gostam de resultados. Gostam de ver e de mostrar. Mais adiante nesse prólogo perceberemos que ele recebeu uma patente por ser um nobre. E se tem uma coisa que todo incompetente precisa é mostrar que seu trabalho é útil. Palavras de nada valem. “Que prova temos disso?

Peguemos agora um trecho maior.

– Will os viu – disse Gared. – Se ele diz que estão mortos, é prova suficiente para mim.

Will já sabia que o arrastariam para a discussão mais cedo ou mais tarde. Desejou que tivesse sido mais tarde.

– Minha mãe me disse que os mortos não cantam – contou Will.

– Minha ama de leite disse a mesma coisa, Will – respondeu Royce. – Nunca acredite em nada do que ouvir junto ao peito de uma mulher. Há coisas a aprender mesmo com os mortos – sua voz criou ecos, alta demais na penumbra da floresta.​

– Temos uma longa cavalgada pela frente – salientou Gared. – Oito dias, talvez nove. E a noite está para cair.

Floresta nevada
Floresta nevada ao norte da muralha.

Repare no subtexto: Will, pelo que a obra amostrou até aqui, parece ser o mais jovem de todos. Ele sabia que haveria uma discursão. Um homem experiente, um nobre e ele. Quem mais tinha a perder é ele e sabia que o arrastaria para o meio dela. Sabemos que ele é o mais jovem por conta de seu comentário (e posterior escárnio de Royce) sobre sua mãe. Tudo isso é entregue sem o autor precisar descrever nada sobre eles. Está tudo no subtexto e na interpretação. Nada de exposição.

Outra ideia desenvolvida no trecho: Eles cavalgaram por oito dias. Uma distância significativa, apesar dos perigos, só para resolver um problema. Eis o sistema desenvolvido pelo autor dando as caras novamente. O autor não te conta, ao invés disso ele só mostra. Ele faz você absorver aquilo dizendo que ali é assim e fim. Além disso, nos próximos capítulos veremos que se não obedecer a ordem de um nobre, perde a cabeça.

Sor Waymar Royce olhou para o céu de relance, com desinteresse.

– Isso acontece todos os dias a esta hora. Você perde a virilidade no escuro, Gared?

“…perde a virilidade no escuro?” Royce abre a boca e solta mais uma afronta ao homem de carreira. Aqui já possível notar que toda vez que fala é em tom de arrogância. Um claro personagem que não foge ao seu propósito e serve exatamente aos interesses do autor. Nobres são arrogantes por aqui. E esse nobre se parece uma pessoa arrogante por inteiro sem fraquejar em sua personalidade.

“Will via a boca de Gared comprimida, a ira só a custo reprimida nos olhos que espreitavam sob o espesso capuz negro de seu manto. Ele passara quarenta anos na Patrulha da Noite, desde que era jovem até se tornar um homem, e não estava acostumado a ser desvalorizado. Mas era mais do que isso. Will conseguia detectar no homem mais velho algo mais sob o orgulho ferido. Era possível sentir-lhe o gosto: uma tensão nervosa que se aproximava perigosamente do medo.”

Will observa a tenção, a afronta, o conflito de geração, de experiência, de patente e o medo. Sim, ele sente o medo. Um medo intenso. O autor nos faz sentir medo através do medo do personagem. Nós não sabemos o porquê. Apenas somos movidos pela curiosidade. Se ela já te pegou até este ponto e você já está imerso emocionalmente na narrativa, já deve estar compartilhando essa sensação através dessa primeira página. Você só não consegue entender o motivo para esse medo. Mas Will sabe de onde ele vem. É o medo do escuro.

“Will partilhava o desconforto do outro homem. Estava havia quatro anos na Muralha. Quando fora enviado para lá, todas as velhas histórias ressurgiram em sua mente, e suas entranhas tinham virado água. Era agora um veterano de cem patrulhas, e a sombria e infinita terra selvagem a que os homens do sul chamavam de floresta assombrada já não o aterrorizava.”

Will que tem apenas 4 anos na patrulha, um décimo de Gared e mesmo em um espaço tão curto ele entende o que estão enfrentando e já partilha do mesmo medo – “suas entranhas tinha virado água”. Will viveu a mesma coisa. E o temor que o autor quer incutir é palpável tanto para um veterano quando para um rapaz. Tudo isso traz ainda mais intensidade nesse sentimento e sobre o perigo que isso representa. Isso é obra do antagonista da obra e isso só veremos lá na frente, porém o autor já começa a trabalhar isso na mente do leitor e com toda intensidade logo na primeira página.

“Até aquela noite. Algo parecia diferente então. Havia naquela escuridão algo ameaçador que fazia os pelos de sua nuca eriçarem. Cavalgavam havia nove dias, para norte e noroeste, e depois de novo para norte, cada vez para mais distante da Muralha, seguindo sem desvios a trilha de um bando de salteadores selvagens. Cada dia fora pior que o anterior. Aquele tinha sido o pior de todos. Um vento frio soprava do Norte e fazia as árvores sussurrarem como coisas vivas. Durante (aqui é o fim da primeira página) todo o dia, Will tivera a sensação de que alguma coisa o observava, algo frio e implacável que não gostava dele. Gared também sentira. Will desejava com toda a sua força cavalgar rapidamente de volta à segurança da Muralha, mas este não era um sentimento que poderia partilhar com um comandante”

Patrulha da noite na floresta assombrada
Patrulha da noite na floresta assombrada

Por último temos um parágrafo de contação de estória. Além do medo, o autor “nos conta” outros pontos que são pertinentes. Moravam na muralha (onde era realmente seguro), um lugar cheio de histórias, capaz de fazer suas entranhas virar água. Conceitos divergentes por povos de regiões diferentes (sul x norte). Uma floresta infinita, fria, escura e hoje trazia algo ameaçador. Sabemos que hoje era diferente pois temos o testemunho de um veterano de 100 patrulhas e um idoso com 40 anos de carreira. Se tem alguém que sabe do que está falando é esse jagunço. Vemos qual era sua missão, encontrar os salteadores selvagens. Eles já encontraram. Já resolveram. Porém, a mensagem não está apenas no jovem Will e suas cem patruhas, e sim em Gared, com 40 anos de carreira e que está a ponto de desafiar um nobre. Tudo isso sem dizer. Tudo isso sem ser expositivo demais. Tudo isso só com imersão sensorial dentro da narrativa.

O autor usa sua sagacidade e não só apresenta o sistema que ele construiu para o seu universo, como também une isso com a apresentação de seu conflito. O “mal” a ser vencido na saga não é apresentado de cara. Mas ele é referenciado de maneira indireta. O inverno está chegando, com ele a longa noite. Na primeira página vemos o medo que o povo tem da noite. Não é coisa de criança. Existe um mal ali(implícito). Algo que vai assolar aquele mundo por toda a narrativa e o Martin habilmente insere tal ideia na primeira página sem você perceber.

Uma das grandes habilidades de um bom escritor é conseguir desenvolver uma trama rica e complexa, coberta por uma grande camada de gordura feita de seu worldbuilding.

Ele não te obriga a engolir toda essa gordura, que alguns podem considerar um excesso, de uma vez. Seus anos de experiência na TV e como editor de livros o ensinaram que pegar um bloco de gordura isolado e obrigar o leitor a engolir vai causar enjoo e aversão. Certamente o leitor abandonaria por ser chata e “não andar para frente”. Imagine 1/2 xícara de óleo de soja pra você beber puro, de uma vez. Agora imagina essa mesma quantidade de óleo no meio da massa de bolo de cenoura com cobertura de chocolate. É uma técnica para transformar algo em uma coisa muito melhor e que vai atrair seu consumidor.

Veja o quanto de informação nos é dada nessa página. O objetivo desse prólogo é apresentar o antagonista. Mas o autor, em uma única página, nos conta sobe seu sistema, seu worldbuilding, seus personagens, culturas, geografia e muito mais. Mostra que nobres, mesmo em desgraça (só é enviado para a patrulha da noite quem fez alguma merda) são arrogantes e soberbos. Temos conflito, temos o tema central da obra e o prenuncio do que é o ponto de conflito. Claro que esse último não vem nesse ponto do capítulo, mas quando lemos a obra inteira notamos que já está ali a disputa pelo poder, que nesse mundo é representada pelo trono de ferro. Eu sei que Waymar Royce não deseja o trono, mas ele faz de tudo para valer a autoridade e poder que seu nome confere. Igual aos pretendentes do trono.

Ficou longo, eu sei. Mas o que poderíamos esperar de uma obra tão densa? O mínimo que posso fazer é tentar dar os créditos por tantos feitos. Estamos falando de uma obra de grande valor. Foi inspirado em grandes autores como George R. R. Martim e nas técnicas secretas que ele usa em seus textos que eu produzi o meu livro Combatitan: Vida Artificial.  Você até pode conferir a leitura do primeiro capítulo e uma entrevista com outros autores aqui mesmo no site

Você que chegou até aqui, meus sinceros agradecimentos. Acompanhe minhas redes sociais para receber mais atualizações desse e de outros assuntos ligados a literatura e cultura. Compartilhe esse artigo com seus chegados. Com certeza alguém vai gostar desse tema. E você que curte literatura ou está tentando escrever seu livro, volte mais vezes. Garanto que teremos mais análises de qualidade como esta.

Nos vemos em breve.

About Post Author

Andre L Maforte

Escritor, pesquisador, editor, revisor, crítico, amante das (boas) artes e humano. Carioca da gema, L Maforte cresceu consumindo a cultura pop de todos os sabores e isso ajudou a formar seu percepção do mundo. Hoje tenta equilibrar a vida entre os estudos, a família e o trabalho. Infelizmente ele está perdendo eficiência pois ainda tem que dormir com alguma regularidade.
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